Lá pela época do ensino fundamental, durante uma visita em casa, um amigo de escola estava vendo as tralhas do meu quarto. Dentre coisas que já nem lembro mais que tive e apreciava, ele parou num balde de Lego com algumas peças montadas.
— O que você está montando aqui?
— São todos os 151 Pokemons.
— É???
Eu puxei um deles, uma simples combinação de peça azul pequena com uma peça verde menor.
“Aqui, ó, é o bulbassauro.”
Ivysaur tinha o mesmo padrão, mas com uma peça um pouco maior, e Venusaur era um nível de pino acima de Ivysaur, com um detalhe vermelho. O padrão de duas ou três peças formando algo singular seguia para completar os 151.
Meu amigo, com toda a razão, não estava enxergando bem isso por conta própria. Eu não fiz pensando em mais alguém entender só vendo.
Eu poderia fazer 7 ou 8 Pokémons mais elaborados usando dezenas das peças que eu tinha disponível, ou eu poderia até fazer um Pikachu detalhado, mesmo que ele tivesse várias peças fora de seu padrão de cor. Só que eu queria fazer todos os Pokémons, e fiz com o que eu tinha. Bastava eu entender que aquele mínimo de peças significava o que eu queria que significasse.
Aonde eu quero chegar contando isso? Primeiro, espero ter feito alguém parar e fechar o texto. Pokemon deve ser um bom meio de distanciar algumas pessoas.
Tem uma dica literária que eu vejo ser recorrentemente seguida a qual afirma que, quando você se propõe a escrever sobre si mesmo (tipo biografia mesmo), deve-se começar por algo muito triste ou impactante para prender o leitor pelo resto da sua jornada escrita. Um trauma de infância, você descobrindo ainda menino que seu avô era nazi ou que seu pai traia a sua mãe com outro cara. Eu estive pensando muito em Succession(HBO) enquanto ainda estava sendo lançada. A série é cheia de momentos que poderiam ficar gravados na minha mente como uma das cenas já feitas. Mas sabe o que realmente não vou esquecer? A cena do Kendall, após pedir para a produção de um evento simular com gases uma NUVEM em local fechado, ver o resultado final, um amontoado de fumaça flutuando sobre o cenário, e ficar completamente decepcionado com o resultado. Vou esquecer tudo de Succession, mas tenho certeza que essa cena vai ficar pra sempre na minha memória. Nesse texto, não vou tentar te agarrar com um trauma. O que eu tenho a oferecer é Kendall frustrado com uma nuvem. Aqui é a sua segunda chance de deixar essa página.
Tenho uma simpatia pelo que é feito através do que não é. Assim, é claro, tudo é feito em escassez de algum recurso, tendo o seu próprio teto de poder. Existe aquela velha história dos episódios de Neon Genesis Evangelion, na reta final, que tiveram que partir para abstrações e enormes pausas dramáticas por falta de dinheiro para fazer algo tecnicamente mais elaborado. Esse é um caso claro, principalmente porque vimos o que aquilo poderia ser posteriormente com um filme que teve recursos, mas gosto também de imaginar, não como as coisas são, mas o que elas não são, e como tudo que é, é também algo que não chegou a ser. Digo, não é a questão de imaginar as infinitas possibilidades, de tomarmos uma decisão e eliminarmos tantas outras versões de mundo. Tem mais a ver com a admiração da ausência. Sabe aqueles vídeos sobre jogos ou filmes que nunca saíram? Eles foram pensados, até começaram, mas nunca tiveram seu lançamento ou sequer foram concluídos. Eu adoro isso. Não aprecio exatamente imaginar como teria sido se um jogo cancelado de Zelda tivesse saído. Eu gosto de saber que ele não existe. Isso me fascina.
Eu tenho um vazio em mim.
A gente até pode levar essa afirmação pro lado deprê da coisa (e não tô querendo excluir isso do todo), só que não é bem nesse aspecto que eu quero chegar aqui.
Essa é a segunda vez no ano que me comprometo a escrever dessa forma, abrindo uma página de texto, ir escrevendo o que penso e sinto e salvando depois. Anteriormente, no começo do ano, eu abri um editor de texto no computador e me comprometi a escrever sobre o meu dia, todos os dias, mesmo que rapidamente, porque acreditava que isso ajudaria a organizar algumas situações do meu dia e pensar nelas numa visão maior. No primeiro dia, apenas escrevi “não quero escrever hoje”. No segundo, também. Repeti isso por uns cinco dias, como se eu estivesse em terapia e me colocasse em silêncio até dar a hora de acabar a sessão. Chegou o dia que eu escrevi. E eu escrevi muito mais do que eu tinha pensado que faria quando me comprometi a fazer isso. Depois desse único texto, eu nunca mais tive vontade de abrir aquele editor novamente. Estava satisfeito.
Naqueles primeiros dias, quando eu escrevi que não iria escrever, mesmo tendo colocado para mim a missão de escrever sobre algo, sinto que aquilo dizia sobre mim tanto quanto o texto onde eu realmente botei tudo para fora. Eu não sou muito bom em me abrir totalmente para amigos, para a minha família e nem mesmo para a minha mulher. Às vezes, nem para mim mesmo.
Esse texto, obviamente, é pessoal. Mas também não é. Esse texto não está num arquivo no meu computador dessa vez. Ele está na internet. Alguém o lerá. Por quê? O que te traz aqui? Você me conhecia antes? Desde quando? Espera algo de mim?
Eu tenho uma visão engraçada sobre o que a gente tem aqui, esse senso de comunidade virtual. Somos todas pessoas que estamos aqui (as bolhas em redes sociais) fazendo uma espécie de escambo indireto. Eu te mostro uma coisa legal, você me mostra uma coisa legal, a gente vai trocando coisas legais, experiências, conteúdo, por várias razões. É muito uma vibe de cidadezinha do interior, né? Buscamos tanto simpatia, apreço por semelhanças naqueles que escolhemos ter por perto (virtualmente) quanto algo de novo que esses podem nos proporcionar. Aí, eu insisto, o que exatamente você espera receber de mim?
Nesse momento, eu ofereço um texto pessoal, que não é lá tão pessoal, e também diz bastante de mim por não ter tanto assim sobre a minha pessoa.
Sabe, esse texto já estava pronto antes de eu começar a escrever. Vocês fazem isso também? De pensar o que vão escrever durante o dia? Enquanto estão preparando o almoço, saindo para comprar algo, conversando com outra pessoa? Eu fiz isso. Pensei em tudo que eu ia dizer e, agora, estou colocando numa página. E, obviamente, ele não parece fazer tanto sentido aqui quanto fazia na minha cabeça. Recentemente, vi alguém dizer que é preciso um nível de genialidade para conseguir transmitir exatamente o que você quer transmitir, como na escrita. Deve ser bem isso. Só que eu gosto de pensar também que as coisas que criamos em nossas cabeças estão no seu lar, na sua zona de conforto. Na imaginação, temos os elementos que conectam ideias com mais facilidade. Frases soltas parecem parágrafos inteiros, palavras-chaves bastam para preencher uma cadeia de significados. Apenas duas peças já fazem um Pokemon. Fora da sua cabeça, além de não ter uma base subjetiva que faz parte do seu ser, tem regras, você tem que se fazer claro o bastante para que o mundo entenda que você está dizendo algo que faça algum sentido.
Talvez esse texto seja apenas eu mostrando combinações de peças de Lego que montei para mim mesmo. Mas se você, de alguma forma, tirou algo de significante do que eu expressei até aqui, seja bem-vindo.
Se esse não for um texto único (Youtuber: “imagine como teria sido a newsletter desse fulano aqui”), eu pretendo postar mais pensamentos, sobre aquilo que estou acompanhando, hiperfoco em coisas esquecíveis, listas ordinárias, etc. Não quero ser curadoria de nada. Estou fazendo aquilo que eu gostaria de ver você fazer.
Vi sua fotinho num like da news dos sem carisma, cliquei e vim ler a primeira news pra saber se ia gostar do seu texto. Gostei, me inscrevi.