#29 Serial Experiments Lain
No episódio dessa semana: Lain (sem spoilers), internet, Dragon Ball, um tiquinho de putaria
(Edição um pouco mais longa que o de costume. Clicar para ler fora do e-mail)
Ao transitar pela internet através de assuntos como deepfake, I.A. generativa que promete cortar centenas de empregos, plataformas de apostas online que vão se tornando alicerce do futebol, vtuber, a dificuldade de conseguir falar com humanos em serviço de atendimento ao consumidor, algoritmos, arte & entretenimento resumidos ao termo “conteúdo”, carros elétricos semi-autônomos, montagem com vídeos POV de drones kamikaze acertando soldados russos ao som de funk brasileiro e um bot no twitter pedindo para eu ver a sua buceta na bio, não consigo parar de pensar: a gente já vive no futuro, não é?
Eu tenho certeza de que, perto da virada do século, o que vivemos hoje era a sensação de futuro que se esperava naquela época. Sem apontar tecnologias específicas. Não tem carro voador transitando pela cidade. Pra que carro voador? Já existem helicóptero e jatinho, meios de transporte que, por terem acesso elitizado, exercem ótimas políticas sociais quando caem.
Por esse sentimento de futuro ter batido forte especialmente agora, em 2024, eu decidi terminar de assistir Serial Experiments Lain, anime de 13 episódios de 1998 do estúdio Triangle Staff.
Minha primeira tentativa de assistir Lain foi quando eu ouvi falar sobre o anime no Orkut. Já havia essa barreira natural, dele ser popularmente conhecido como um anime difícil ou mais adultão. São famas que fazem sentido. Quando terminei o primeiro episódio, fechei e pensei “isso ainda não é para mim, certo?”. Não se tratava apenas de ter ficado confuso, não ter entendido. Fui bem sincero comigo mesmo em admitir que os temas do episódio não me pegavam ainda. Eu preferia molecagem, ver espadinhas batendo sem motivo do que pensar sobre a busca de razão na morte por meio de uma narrativa introspectiva. Lain fica para depois.
O Orkut, onde descobri Lain, foi o espaço onde eu cristalizei a figura de pessoa de internet. O período de ouro dessa plataforma coincidiu com a entrada do primeiro computador pessoal na casa dos meus pais. Nos primeiros dias, passava madrugadas interagindo com estranhos em tópicos de chat livre ou brincadeiras bobas tipo “beija ou passa” e contar até 10 sem ser interrompido. Com o tempo, fui firmando raízes em comunidades temáticas específicas, convivendo com as mesmas pessoas, entrava na internet para ver no que deu um tópico ou resposta que criei. As interações na comunidades me catapultavam para outros cantos da internet, onde eu buscava músicas, filmes, leitura, histórias, blogs, fóruns, educação, pornografia, jogos, softwares úteis e lixo virtual. Sem perceber, essas comunidades de visita frequente seriam os lugares onde eu poderia ser “eu mesmo”.
Sempre existiu na minha mente a questão de eu estar ou não dividindo o meu “eu” real e a pessoa que ativamente sou na internet em duas personalidades diferentes. A resposta sempre variava com o tempo. Na verdade, a resposta não importava. Só dessa possibilidade ser uma questão a ser pensada com certa frequência já dizia bem mais da relação que eu estava mantendo com a internet.
Toda a experiência que tive com a internet até hoje criou uma base interessante para finalmente tentar rever Serial Experiments Lain, agora, no futuro que talvez tenha bastante de Lain em algum nível. Primeiro que, veja só, as legendas do anime que eu assisti claramente foram traduzidas automaticamente com I.A. sem revisão alguma. Após dois episódios, dá para perceber que houve alguma revisão para não ter erros gritantes. Mas vamos lá, sobre o anime, eu não sei se é o tipo de coisa que justifica ter aviso para quem lê, só que me pega muito o fato de, em 4 episódios da série, já ter ocorrido 4 suicídios (falar “suicídio” tira o alcance desse texto? Espero que não. Ser forçado a escrever “$u1c1d10” me dá uma sensação de derrota). No suicídio importante para a trama, o do primeiro episódio, Lain perde uma colega de sala. Essa colega, após morrer, chama a Lain por e-mail para a “Wired” (é basicamente a internet desse mundo. Vou só chamar de “internet” para ficar mais prático). Lain, uma menina tímida e introvertida de uns 13 anos, ainda não é heavy user de internet. Ela entra vez ou outra para ler e-mails — isso quando a lembram dessa tarefa. A partir de então, Lain vai se aprofundar cada vez mais no maravilhoso mundo da internet e em tudo de bom que — como você sabe muito bem — ela tem a nos oferecer.
Não sei se você viveu isso (até porque é bem mais uma perspectiva fora de você), a situação do aprofundamento da atenção na tela do computador. O membro da família que vai cada vez mais enfiando a cara no monitor, comunicando-se mais com pessoas virtuais do que com humanos de carne e osso ao seu redor. Os demais da casa passam a ver essa pessoa como alguém que está falando sozinho ou com um amigo imaginário. O anime mostra bem esse cenário dentro de uma família. Com a ajuda do pai, um profissional da área de tecnologia, Lain vai mergulhando progressivamente na internet. Em comparação ao que a gente vive hoje, essa seria até uma experiência “de outros tempos”. É bem mais comum ver uma criança de 4 anos muito familiarizada com o smarthphone da mãe, exibindo para você algum joguinho online de mundo aberto estilo Minecraft, onde você mata pedestres como se fosse GTA. O mergulho lento no mundo virtual e destoante dos indivíduos ao redor é consideravelmente difícil hoje porque grande parte das pessoas já está constantemente conectada de alguma forma. Quem passava horas ininterruptas grudado no computador talvez não imaginava sua mãe no futuro só conseguindo almoçar se estiver vendo vídeos na internet.
Assistir Lain atualmente tem essas duas sensações: recordar os primeiros passos firmes da relação da sociedade com a tecnologia de informação na virada do século e fazer comparações das apostas de futuro que o anime sugere com o que o nosso mundo atual apresenta. No primeiro caso, é muito satisfatória a escolha até bastante pé no chão de tecnologia. Não há tanta extrapolação tecnológica com design futurista ou coisa sem lógica tipo um computador de desenho da Liga da Justiça. Os computadores visualmente são semelhantes ao que existia na época. Lain vai aos poucos progredindo o seu hardware, mostrando placas, cartões de memória e conectores que ao menos quem abre o PC com mínima frequência para limpá-lo vai se familiarizar. Ainda assim, o escalonamento do aparato físico por si só é uma imagem forte desta série. A quimera de computadores vai expandindo e dominando o quarto da garota até ultrapassar a linha anterior da lógica, com máquinas a vapor, imagens transpassando monitores e o som de pés pisando em líquido quando alguém entra em seu quarto. Um laboratório caseiro.
No anime, temas da internet são interpretados em ações do mundo real, o que reforça a sensação recorrente dos dois mundos se confundirem. Crianças transitando e socializando livremente em um bar pode levar a pensar nessas mesmas crianças e a liberdade perigosa que elas têm na internet e a maturidade forçada pelo ambiente adulto (sexualidade, drogas, violência). Um pensamento errado que tenho constantemente é o de excluir crianças da lógica da internet. Se estamos falando de um local com fácil acesso e que dissemina com enorme naturalidade conteúdo e comportamento adulto (principalmente violência e sexo), crianças não deveriam compartilhar desse mesmo espaço sem restrição. Mas elas compartilham. Estão aqui conosco. E, bem, eu não vou me podar por causa disso. A responsabilidade dessa presença inadequada é, principalmente, dos pais ou parentes dessa criança. Sendo assim, fica muito cômodo “esquecer” essa presença indesejada e talvez nociva para ela mesma no ambiente virtual já que, para o bem da minha consciência, imputo o problema todo no adulto fisicamente mais próximo da criança.
Agora, do ponto de vista mais amplo, é claro, o anime vai questionar a tal oposição entre o mundo real e a internet. Esse tema ocorre através da própria dualidade do ser que a visão de mundos divididos traz. A Lain começa como essa menina fechada, de poucas interações sociais que as suas colegas de classe tem que extrair dela a participação na roda de conversa. Na internet, num ambiente onde o seu jeito de falar e até a sua imagem não precisam existir para os outros, essa pessoa introvertida tem mais facilidade de se expressar. Com esse meio confortável, você tanto vai externalizar características suas que você não tinha segurança de expor quanto vai desenvolver novas através da influência desse meio e as possibilidades que ele oferece. Assim, mesmo sendo muito fechada pessoalmente, uma figura mais engraçada, revoltada, cínica ou até mesmo carismática naturalmente ganha forma na internet. Desde cedo, é levantada a possibilidade de mais de uma Lain existir, ou ao menos uma nova face dessa mesma pessoa, sendo essa outra Lain bem mais popular entre pessoas aleatórias das quais ela mesma não tem ideia de quem são. Você já foi alguma vez esse tipo de pessoa? Já evitou que gente do seu convívio não encontrasse seu perfil no twitter ou instagram? Se sim, por quê? No caso, você não quer que essas pessoas lidem com o jeito que você age na internet ou até como você realmente é? O que exatamente eu tô fazendo na tua [roda] se a gente nunca conversou? Seu colega de trabalho mais próximo não vê o que você posta, mas a arroba de nome “Depiladora puta com buceta espumando porra”, que você não faz ideia de quem seja, sabe bem o que realmente te faz rir. A rede é esse lugar que consegue colocar pessoas num limiar entre completo estranho e íntimo.
A divisão entre dois mundos, o real e o virtual, com o tempo, é questionada ou deixa de fazer sentido. Afinal, a internet é mundo real. O mundo real, hoje, é o que é muito pelo que acontece na internet. É por meio da negação ou superação desse fracionamento de mundos que, através da figura da Lain, o anime fala de identidade, memória, narrativa e a busca por ser “““deus””” em comparação ao poder da internet na vida humana. Onipotência (mudar a realidade através da internet), onipresença (estar em todo lugar através da rede) e onisciência (qual história contar para quem já conhece tudo?). Revisitar essa visão de dois mundos é um tanto engraçado hoje, porque a época permitia essa barreira simplista em que a internet era tratada com um distanciamento que dava um ar de aventura. Atualmente, traçar uma linha tão definida entre online e offline tem essa sensação boba de reportagem do Jornal Hoje ou tema de redação do ensino médio. Mas o foda, o que realmente me pega, é que, ao recordar tais assuntos recorrentes do passado, eu fico com a sensação de que certas discussões, por mais banais e maçantes que pareçam hoje, não foram bem absorvidas anos atrás. Na verdade, tudo foi atropelado por novas mudanças que foram se enraizando até as mudanças seguintes virem. Repensar a solidão dentro da lóg— Espera, faltam 5 minutos para terminar meu horário na lanhouse. Enfim, Lain é bom.
🐉 Akira Toriyama morreu. Do nada. QUEM esperava a morte desse senhor? Não existia rascunho de obituário dele em nenhuma redação. Não era alguém que a gente já espere a morte a qualquer momento, como Silvio Santos, Cid Moreira, marcas de biscoito ou algum adversário político interno do Putin.
Bem, aconteceu. Ele era foda, você sabe. No emaranhado de fandom do Toriyama, pode existir a ideia de que muita gente fica na camada superficial do hype eterno e “chespiritesco” de gostar demais das porradinhas colossais e vultos de socos frenéticos de Dragon Ball → Z ← e não dar o devido valor pro Dragon Ball mais comédia & aventura (principalmente nas folhas de mangá) ou os demais trabalhos icônicos ou os menos lembrados do Toriyama. Não é momento de tierlist de gosto. Queria deixar algumas lembranças, pensamentos e preferências especificamente sobre a franquia Dragon Ball:
1. Não sei como foi para a maioria das pessoas aqui no BR, mas a minha experiência com Dragon Ball foi assistir quase todo o começo do dragon ballzinho até a derrota do Goku contra o Tao Pai Pai. Anos depois, eu comecei a ver o Z com o Goku já morto correndo o caminho da serpente e cheio de personagens que eu não fazia ideia de quem eram. Tentar entender a trama com esse buraco no meio foi uma experiência particular que acho mais interessante do que ter a sorte de ter pego a história continuamente
2. Dragon Ball deu aquele boom em criança aprendendo a desenhar replicando o Goku estático em papel que deve ter sido o apocalipse para professores de ilustração na época
3. Isso deve ter acontecido em vários locais similares: a locadora de video game onde eu e meus colegas de escola jogávamos baniu o jogo Dragon Ball Final Bout de PS1 da própria biblioteca porque ficar apertando botão freneticamente na competição de rajada de energia inutilizava os controles em poucos dias
4. A twitch tem vários canais que transmitem Dragon Ball 24 horas por dia. Mesmo tendo live dublada em português, eu adoro parar um pouco em canais dublados em espanhol para ter a sensação de que Dragon Ball é essa coisa gigante em comum que une a América Latina
5. Foi um período complicado de paqueração juvenil quando você tinha que competir a atenção das meninas da escola com o Trunks do Futuro
6. A paleta de cores do Vegeta e Nappa no episódio que eles fazem um pit stop num planeta aleatório
7. Difícil mensurar o dano na educação brasileira com milhares de crianças matando as últimas aulas do dia para poder assistir Dragon Ball (a globo, como sempre, é cúmplice)
8. Dragon Ball tem a franjudinha definitiva
9. A minha piada favorita de Dragon Ball é quando o Kuririn tá lutando com um adversário cuja habilidade de luta é ser muito fedorento e o Goku lembra o Kuririn que ele não tem nariz
10. Robô esqueleto pirata. Foda
11. Aliás, as máquinas de Dragon Ball (e na carreira do Toriyama no geral, é claro) são fascinantes. Eu acho incrível como ele cativa e instiga o leitor a imaginar por si só o background do mundo da história que ele tá contando só mostrando seus personagens montados numa moto fantasiosa em uma cena sem relação direta com a trama
12. Eu particularmente acho a camisa do Goku no mundo real uma das tentativas mais crinjola de produto. Negócio horroroso. Mas sempre me pega muito quando vejo funcionários de um mercadinho perto de casa usando um uniforme laranja com detalhes azuis claramente inspirados na roupa do Goku
13. Teve um tweet que perdi que pontuou isso e é essencial: o que o Toriyama colocava em papel era, acima de tudo, divertido! Gente, animais, máquinas, até mesmo monstros com expressões vilanescas transmitem alguma galhofa
14. O segundo gato que eu tive se chamava Gohan :))
15. A abertura BR de Dragon Ball GT é meio que o “Evidências” otaku (digo num sentido não ruim, se é que isso é possível)
16. Essa porrinha que fica no ombro do pai da Bulma
📸[Imagem da semana]: professor de geografia no seu sábado mais fraco
🎵 Voltando para Lain, não tem como deixar de citar o icônico tema de abertura
Eu gosto de algumas coisas desse álbum da banda bôa, mas a canção que me acerta em cheio mesmo é essa
Aproveitando que estamos falando de música e o substack já deu aviso de limite do email, tem mais dois sons que queria jogar aqui: novo álbum da Deize Tigrona tá bom. Ó essa faixa com o Boogarins. A música é sobre São Paulo, mas o DDD continua sendo 021
E a banda japonesa AJICO lançou novo EP e essa música me pegou legal
🔗 Outros links:
Ao menos para mim, não tem como não dar play num podcast sobre a vida do Clodovil. Serão seis episódios e já tem o primeiro (Spotify)
Como é de conhecimento geral, 11 de setembro interrompendo DBZ na TV é lorota. Mas a mensagem em Serial Experiments Lain na TV americana no dia seguinte é real e tem registro (twitter)
O Kleber Mendonça Filho fez aquela provocação sobre a divisão de 3 atos, o Quadrinhos na Sarjeta comentou sobre e aí o PH Santos comentou por cima do comentário. Se você não tiver aversão a algum desses figuras (ou fechou o bingo de detestar os três), vale a pena dar uma olhada para relembrar armadilhas que podemos nos colocar ao assistir ou ler algo (Youtube)
Vídeo sobre a mente de Steve Ditko através do personagem Mr. A (Youtube, EN)
Um maluco faz (e muito bem) seus próprios títulos “mix” de quadrinhos antigos (Substack)