Quando obras novas de artistas que eu aprecio saem, fico com um vício de quase perpetuamente chamar aquilo de “O novo do/da” até que um posterior lançamento herde esse prefixo. Já faz uns 7 anos que “We Got It from Here... Thank You 4 Your Service” saiu, mas eu ainda o chamo apenas de “o novo do A Tribe Called Quest” quando vou escutar.
O meu “o novo do” mais recente é, vejam só, o novo do Miyazaki. Ele existe, ele saiu. Acho realmente incrível como, até o momento que escrevo esse texto, tirando uma imagem de divulgação e brevíssima sinopse meio vaga, absolutamente NADA de informação sobre o filme é de conhecimento público. Estar no Japão e ir assistir seco esse filme é uma experiência que confesso estar invejando.
É de se esperar que Hayao Miyazaki e Ghibli sejam (em caso de não unanimidade) bastante conhecidos. Fora da bolha animes mesmo, desde os cinéfilos até quem tinha tumblr quase 10 anos atrás. Minha mulher, porém, não fazia ideia do que era Ghibli quando sugeri algum filme do estúdio para nós assistirmos. Por ela não ser muito dos animes, seguiu a questão de escolher qual filme seria a melhor porta de entrada. Acabei escolhendo A Viagem de Chihiro (2001) por dois motivos distintos: pela estrutura ser semelhante à Alice no país das maravilhas (uma história ocidental conhecida) e pelo pano de fundo rico de folclore japonês e a interação desse povo com o seu meio (a relação de Chihiro, uma pessoa, e Haku, divindade/rio/natureza, ser um reencontro é uma sacada poderosíssima). Ela adorou Chihiro e vimos vários outros do Ghibli em seguida.
Quando eu vejo a figura do Hayao Miyazaki, a primeira coisa que me vem à mente é o vídeo dele assistindo ao filme de estreia do próprio filho, Goro Miyazaki, como diretor. Imagine a situação: seu pai, lenda viva do cinema (sem pressão), indo já com expectativas baixas e má vontade assistir o seu filme de estreia. A distância entre vocês dois já é cinema por si só, Miyazaki pai sequer senta ao lado do filho na exibição. Após apenas uma hora de filme, o pai sai da sala de exibição, puxa um cigarro para acender e diz algo que provavelmente deve ter virado de ponta-cabeça a concepção de um punhado de jovens aspirantes de arte vendo esse vídeo.
“Não deveria fazer um filme baseado em suas emoções”
Com o cigarro já aceso, ele senta e fuma em completo silêncio, visivelmente inquieto. O relógio em seu pulso desmente a sua noção de tempo sufocada pela angústia “parece que foram 3 horas”. Miyazaki se levanta e volta para continuar o filme.
Isso foi só o começo. Um baita começo. Saindo do filme, um senhor que parecia conhecer o Miyazaki pai faz um elogio pomposo sobre o longa de estreia do Goro. Miyazaki só ignora. Perguntado sobre o que achou do trabalho do filho… Olha, não querendo inflamar mais do que já deve estar parecendo que eu estou fazendo, mas, basicamente, ele chamou o próprio filho de MOLEQUE. Como lidar quando você finalmente mostra para o mundo o que pode fazer e a crítica mais pesada vem de quem te carregou no colo?
Para mim, essa situação por si só já me atinge como se fosse uma obra própria. É como se tudo que eu assisti de belo e otimista e que me encantou no trabalho do Miyazaki fosse uma preparação para esse momento de conflito e desconexão em sua vida pessoal. Isso é incrível. Eu sou uma pessoa ruim por achar isso incrível?
Não desejo a insatisfação do Miyazaki com o filho. Se fosse um vídeo do pai chorando com o fim do filme, batendo palmas em pé e dando um abraço no filho dizendo “boa, meu garoto! esse é meu filhão, meu orgulho!” (e, claro, realmente fosse um filme que despertasse esse sentimento), eu ainda acharia incrível, mas de uma outra forma com toda a certeza. A tragédia bate diferente em nós, não é?
Tem um vídeo de 2020 onde o Hayao Miyazaki faz um (uma unidade de) elogio ao trabalho do filho no filme que ele estava envolvido na época. Podem falar que foi um pedido do resto do estúdio, ou coisa do tipo, para ajudar na divulgação, mas gosto de aceitar que foi sincero.
Falando em pai e Miyazaki, me recordei da época do lançamento do último Rebuild de Evangelion. Como forma de promoção, foi feito por uma emissora de TV japonesa um documentário sobre a produção desse filme, bem focado, é claro, na figura do Hideaki Anno. Dentre imagens de bastidores, capturas de movimento, Anno contando como quase se jogou de uma ponte para tirar a própria vida e reuniões descontraídas em restaurante, tem um trecho onde o Anno fala sobre o próprio pai. Óbvio, o autor de uma obra famosa pela complicada relação entre filho e pai, falando sobre o próprio pai, seria algo marcante. Ele conta que o pai era lenhador e que, pela negligência do seu colega que estava cerrando junto uma árvore, o pai perdeu uma perna. Isso transformou completamente a visão de mundo do pai e a relação dele com as pessoas, inclusive com o filho. Foi nítido para o próprio Anno mesmo ainda criança.
Quando ele acabou de contar essa história, eu não pude parar de cogitar uma coisa: e se foi ali, quando o erro de um terceiro tirou a perna do pai dele, que surgiu Evangelion? Não digo no aspecto da vida dele seguir o caminho de ser animador e diretor, apesar dele ser animador também ser parte do que levou ele para baixo, sendo os problemas com a produção de “Nadia: The Secret Of Blue Water” e a noção pessoal disso possivelmente uma resposta mais fundamentada. Digo Evangelion… o sentimento Evangelion, saca? É claro, é só uma hipótese, uma análise pseudo-psicológica forçada e sem base de uma situação, tipo as feitas por usuário padrão do twitter. Mas se essa tragédia não tivesse acontecido, o quão diferente o Anno seria? Aliás, o quão diferente uma parte da história da indústria dos animes seria? Nesse caso, eu consigo me sentir uma pessoa ruim, um pouco que seja, por ficar fantasiando o epicentro do trauma que fez um artista ser celebrado e cultuado. E, bem, mesmo tentando pensar antes de Evangelion, o próprio Evangelion já seria uma resposta para essa questão, certo? De lidar com o sofrimento pessoal e com a dificuldade de entender e se relacionar com o outro. Nada por acaso, o novo do Anno, Shin Kamen Rider (2023), também fala sobre relações interrompidas entre pais e filhos.
Mas se tudo realmente começou ali, e eu pudesse voltar no tempo, no dia que aconteceria aquele acidente de trabalho, é óbvio que eu escolheria apagar Evangelion da existência. Que se foda Evangelion. Eu quero que essa criança que eu futuramente nem conhecerei, Hideaki Anno, tenha a mínima chance de ser feliz.
(Convenhamos, impor a sua ideia de felicidade através de alteração da realidade seria coisa de vilão do Anno)
[Bônus]
1- Tenho achado interessante a experiência do bluesky, a rede social “Série C”. Muita gente não embarcou na onda do site e eu entendo. Lá na Outra Rede, a gente está numa eterna situação de “apesar de tudo (ele), ainda está aturável”. Bem, nada no antigo site muda para melhor, os recursos bons são tirados e a tendência é seguir esse ritmo de decomposição. Mais do que isso, seguir uma filosofia torta que parece o contrário do que fez o site ser bom como era. Não digo que você deveria largar as conexões que construiu durante anos naquele site, mas deveria ao menos cogitar estar preparado para refazê-las em outro local, pois tem alguém muito empenhado e com poder de transformação para que você siga esse caminho em algum momento. Ou talvez chegue o cenário em que você esteja basicamente numa página de crypto e bets porque sua resistência foi maior que o poder e visão de um bilionário.
2- (logo após chutar o twitter, vamos postar conteúdo de lá) Muito FORTE o que o Kojimão da massa falou após assistir O Novo Do Miyazaki:
3- O capítulo de Chainsaw Man da semana passada foi o Fujimoto mais Fujimoto em tempos. Imagina que loko seria se essa obra tivesse uma adaptação em anime??
4- Esse cabra está passando pelos títulos da Shonen Jump cronologicamente e comentando um pouco sobre. Vale dar um visu (já tem 3 vídeos):
5- Eu invejo muito a pessoa que editou a imagem de divulgação de um evento nerds de João Pessoa e teve a enorme oportunidade de colocar essas duas figuras lado a lado: