#34 Pirataria e mutilação genital
No episódio dessa semana: Dandadan, gibis, likes, galãs antigos
O indivíduo em situação de gibizeiro é, antes de tudo, um acumulador. A leitura do gibi que ele aglomera não passa de uma tentativa de dar razão ao seu transtorno. Infelizmente, o acúmulo de gibi não vem acompanhado da necessidade de organização e princípios mínimos de arquivologia ou gestão de estoque. Quando, em raros momentos, bate a vontade de ler uma história específica que essa pessoa comprou, e ela está perdida para sempre em caixas, pilhas ou prateleiras sem qualquer padrão de identificação, o gibizeiro acaba decidindo comprar novamente (talvez até pela terceira vez) a mesma história, aumentando em alguns litros a piscina que o afoga.
Preocupadas com esse agravamento, entidades de direitos humanos apresentaram alternativas para diminuir situações de acúmulo de gibi, por meio da pirataria, através de fóruns, drives, grupos de conversa, sites de leitura online e aplicativos de aparelhos portáteis, como Tachiyomi e similares.
Cara, que esquisito postar um printscreen do Chico com legenda de fala. Eu posso colocar qualquer coisa nessa legenda.
Ok, e falando sobre pirataria…
Com o “fim” do aplicativo de leitura online de quadrinhos piratas Tachiyomi, resolvi testar o aplicativo que o substituiria, o Mihon, que acaba sendo apenas o velho Tachi com a responsabilidade de conteúdo pirata terceirizada para quem controla suas fontes. Escolhi Dandadan para testar a leitura, o mangá sobrenatural que é famoso pelo protagonista perder o pau e as bolas. Ainda tô nos primeiros arcos e gostando bastante. Eu não sou leitor recorrente de mangá, então muitos aspectos que eu percebo nessa obra acabam me puxando pra cima, na perspectiva de visão geral da comunidade otaku, que é boa parte da minha timeline. Em geral, na parte mais empolgada dessa galera, sempre surgem uns papos definindo e reinventando as demografias clássicas, misturando com gênero, tema e classificações não oficiais. Questionar qual seria o novo big 3, o dark trio, dark shonen, o meme de que fã de seinen só leu três mangás na vida, entender demografia como gênero, etc. Muito provavelmente devem ser discussões gringas que youtubers brasileiros ficam replicando e um Leonardo Kitsune, Vigilância Sanitária ou podcast AoQuadrado vão tirar sarro, ou o Ilha Kaijuu fará um vídeo de 1 hora e 40 revisitando o pós-guerra do Japão. Explicar Dandadan, vindo de uma pessoa despreparada como eu, poderia também cair nessas deformações de demografia. Porque, por exemplo, eu poderia tentar inventar uma mistura de romance com lutinha que a descrição caberia bem mais num anime dos anos 90 que não tem nada a ver com a história que eu estou falando. Eu não imagino ninguém começando a ler esse mangá pelo romance, mas com certeza muita gente continuaria por esse motivo.
Dandadan, de certa forma, é um mangá de adolescentes, feito para adolescentes que, caso você não seja um, seria ideal o ler como um adolescente. Tem dois momentos bem distintos do mangá que me ativaram essa chave sobre ele:
Uma série de páginas onde o garoto e a garota protagonistas estão procurando um ao outro na escola e ficam se cruzando sem se encontrarem até desistirem da procura e um perceber o outro ao seu lado
Detesto puxar uns achismos de Lá No Japão Acontece Assim, mas é bastante peculiar o tom dado em obras japonesas para boatos e fofocas que destroem vidas, principalmente na escola e envolvendo garotas. Em Dandadan, uma personagem tenta espalhar um boato sobre a protagonista na escola. Mesmo sendo apresentada como uma malvadeza teen, uma molecagem, fica no ar o quão pesado pode ser para uma garota receber olhares e julgamentos do ambiente que ela é obrigada a frequentar por anos.
É engraçado eu vir aqui e falar que uma obra para jovens, numa revista famosa de história para jovens, cercada de outras histórias para jovens, é bem jovem, porque é raro eu sentir isso em shonen lutinha (entenda por “shonen lutinha” o que você quiser, mesmo sendo só o dogma da demografia), por mais contraditório que pareça. Eu não lembro com clareza as questões puramente de adolescente do Ichigo, Itadori ou Midoriya. E também, num geral, a questão de faixa etária dessas obras (na prática e para além das fronteiras japonesas) é uma bagunça muito interessante. Um fã de Naruto varia de uma criança no meio do estágio pré-operatório de desenvolvimento até um marmanjo que já troca as fraldas do próprio filho. Dentro desse recorte de obras da Shueisha, eu fico fascinado em ver, por exemplo, o que ocorreu semanas atrás com o capítulo de Chainsaw Man, que deu um backflip em quem ainda acompanha esse mangá, e tento imaginar como um adolescente ficou perdido — talvez até revoltado — com um capítulo que questiona hierarquia de sentimentos e o seguinte termina com uma mão cheia de porra (e também, imaginar que esses capítulos existem justamente para esse jovem).
Bem, eu nem cheguei a explicar sobre o que é Dandadan, não é? Eu já falei antes, tem em algum canto dessa newsletter: eu não costumo fazer review, sinopse ou qualquer outro formato parecido. Eu não tenho o comprometimento de explicar quem é Chico Bento, que as histórias dele se passam na roça e buscam exaltar uma pureza bucólica através da inocência infantil. Eu parto do meio ou de um detalhe solto e vou desenvolvendo e torcendo para fazer algum sentido. Mas, se ficou faltando uma definição mínima, acho que dá para dizer que Dandadan é Arquivo X pra quem não viu o penta.
Continuando o passeio pelo Mihon, recentemente, dei de cara com a seguinte situação

Esqueça o que eu disse antes, DESSA VEZ é interessante ter uma sinopse: Foreskin Man (Homem-Prepúcio) foi um gibi de super herói, lançado em 2010, criado SERIAMENTE para propagar o combate à prática de circuncisão nos Estragos Unidos, tida como mutilação genital infantil pelo autor do gibi e a organização não governamental que ele representa. Eu sei, você já pensou em vilão representado com caricatura antissemita, mas você acredita que isso só foi aparecer na segunda edição? Na primeira, o Homem-Prepúcio luta contra um médico prestes a fazer o procedimento num bebê masculino. E na terceira edição, é feita uma equiparação da circuncisão com o problema da mutilação genital feminina na África. Você já ouviu falar dessa outra história, não é?

Eu tenho uma lembrança forte de quando escutei sobre essa situação pela primeira vez, não exatamente pelo terror de barbaridade ocorrendo longe da civilização que esse tipo de história inevitavelmente cai. Eras atrás, numa sala de cursinho pré-vestibular, daquelas com centenas de cadeiras, e boa parte delas ocupadas, um professor fugiu da matéria de literatura e começou a falar sobre uma prática ritualística ultrapassada que ocorria na África. Meticulosamente, ele contava sobre uma garota indefesa hipotética vítima de um ritual de religião não especificada, aproximando-se de suas partes íntimas de forma descritiva, detalhada e bem esquisita. Com a plateia tomada pela história, a descrição do professor foi evoluindo até chegar à parte onde ele, metaforicamente, puxa e corta o clitóris da pobre menina hipotética (usando dois dedinhos de tesoura atravessando o ar num movimento seco), fazendo com que uma aluna da fila da frente deixasse escapar um BERRO de susto, pois ela sentiu o SEU próprio clitóris sendo cortado naquele momento tamanho o envolvimento com a descrição. Todo mundo riu e ela se enterrou de vergonha.
Eu estava falando sobre o que mesmo? Ah, o gibi do Homem-Prepúcio. É, essencialmente, uma das coisas mais americanas que eu tive contato ultimamente. Não leiam.
📺 Existe um evento corriqueiro e específico na minha tl que eu acho muito importante, onde gays e mulheres redescobrem atores lindos, no auge da sua beleza, através de novelas reprisando na TV Viva e compartilham no Outro Site. Alguns casos que já passaram pela timeline:
Herson Capri: Timothy Dalton brasileiro, bigode criminosíssimo
Flávio Galvão: ele era uma espécie de galã “SHOTO” (FGC). Apresentava características básicas e facilmente gostáveis num galã de novela
Reginaldo Faria: ele é pai do também galã Marcelo FARIA e eu só descobri agora?
Paulo Goulart: a caracterização do seu personagem em Mulheres de Areia carrega fetiches que só foram redescobertos pelo mainstream décadas depois, em obras como Dungeon Meshi
Marcos Palmeira: de longe, e com muita folga, o cabra mais bonito da TV na década de 90
Antônio Fagundes: durante os anos 80, por um provável pacto sujo e obscuro entre globo e a ditadura, seu peito peludo era coberto, bigode arrancado, colocavam cabelo lambido e óculos de tonhão na tentativa de buscar um Fagundes sem apelo sexual algum. Não adiantava, ele continuava gostoso
Aproveitando o gancho e também o mês do orgulho…
[📝Momento Listas] Lista de inimigos da comunidade LGBTQIA+
Bryan Singer: cobriu os X-men de couro preto e, mesmo assim, entregou uma das representações mais héteros da equipe
Disney: a ideia do eterno primeiro personagem gay em obra da disney nada mais é do que uma mensagem subliminar para que você nunca saia do armário
Gege Akutami: pode parecer um aliado, mas enche o mangá de lgbtqia+ pra depois ir matando um após o outro
CBF: instituição tão bifóbica que desenterrou e reconheceu um título nacional de 1937 do Atlético-MG pra ele passar a ser tricampeão brasileiro
Gente que conversa lado a lado e impede a passagem de pedestres: gay é um ser com pressa. Fechar o corredor é, territorialmente, um ato de homofobia
🔗Outros links:
Tiny desk da Chaka Khan enfiou alegria na minha goela (Youtube)
O excelente PUNCH PUNCH FOREVER! já tem dois episódios (Youtube)
Um passeio pelos RPGs de Street Fighter (Youtube/EN)
Acompanhando diariamente os vídeos sobre gibi no canal de gibi do Chico Barney (Youtube)
O meu Lore Para Dormir (definição no segundo texto dessa newsletter) mais recente são os vídeos sobre fighting games e franquias da CAPCOM da Vikatamari (Youtube)
Também tenho gostado dos vídeos sobre animação do canal Estudo de Animação (Youtube)
Esse games de drift no estacionamento (Steam)
💙 A rede social impraticável twitter tirou a opção de ver os likes da pessoa. Vou deixar aqui o relatório de likes que apliquei nos últimos dias:
Thread comentando posters de Roland Garros / Bolsa minúscula de iniciação científica / Os seios de Laios de Dungeon Meshi / Gêneros do sol e da lua / Trecho da abertura original de Digimon Tamers / Carta de Yu-Gi-Oh que o Braz disse que eu lembro para ele / Arara pedindo para eu assistir Cats e falar sobre na newsletter (dificilmente farei) / Renan reclamando de Metallica em Fortnite em pleno mês do orgulho /