Não crer em Deus foi inevitável para mim. Ainda que eu estivesse disposto a pisar numa igreja e tentasse, apenas não rolou. Não teve o “click”, sabe? Eu não quero estar num culto ou missa. Eu não sinto nada construtivo ao escutar padres ou pastores falarem, ao ler a bíblia ou ver alguém emocionado com a sua fé. Se existir qualquer coisa além da morte mesmo, acho que me fudi. Mas não posso ser desonesto comigo mesmo e performar uma espiritualidade que não sinto. Ainda assim, Deus estará sempre comigo, porque eu vim de família católica, e esse vínculo não é tão fácil de escapar, particularmente na minha família, assim como fumar na infância (R.I.P. Lynch) e a proximidade com gatos. Se os ritos oficiais me dão preguiça — ir à igreja e escutar o padre falar coisas que eu não dou a mínima —, os pequenos costumes sempre foram cultivados. As benças, santinhos protetores e outros gestos de carinho através de signos de fé estiveram na minha vida sem tanta resistência. Eu nunca neguei um Almanaque Santo Antônio dado de presente. Oras, era um almanaque! O TikTok de tempos antigos, de certa forma.
Não que eu me considere, mas sempre adorei o termo “católico não praticante”. Precisa praticar? Digo, acho que sim, deve ter algo sobre isso em vários cantos do livro lá. Minha mãe é católica praticante, ao meu ver, porque ela sempre teve o gesto tipicamente católico de doar o que sobra sem esperar nada em troca. Se ela comprasse um novo fogão, alguém que precisasse ganharia um fogão usado sem qualquer defeito. Uma inimiga natural da plataforma OLX.
A minha mãe, afinal, é muito comum no país em que vivemos. Se alguém pedir para você imaginar uma mãe metafórica, e se você não estiver imaginando a sua própria, muito provavelmente estará imaginando a minha. Imagina aí, agora. É, a minha mãe é assim mesmo. Só um tiquinho mais magra, porque ela tá fitness agora. Ela tem essas pequenas práticas de catolicidades, os terços e rogar para santos, além de outros costumes típicos de mãe brasileira, não necessariamente ligados à religião. Ela sabe cuidar de plantas, adora vasilhas, bota fofoca em dia, tem um caderninho onde anota à mão centenas de receitas que vê na TV e nunca fará e, é claro, ela ama Roberto Carlos.
Roberto Carlos
Você sabe o que é Roberto Carlos. A pessoa e também Roberto Carlos, o fenômeno, a experiência, a cultura de Roberto Carlos no Brasil. Aqui no Pará, tem o programa de rádio “Roberto Carlos em Detalhes”, uma faixa de duas horas diárias tocando as mais variadas músicas desse cantor há décadas.

Ele divide o título de “rei” com o maior jogador de futebol da história. Num mundo onde não há mais Silvio Santos e Faustão aos domingos, ele ainda existe — pelo menos no fim de ano, no seu especial da Globo. Roberto Carlos simplesmente é.
E, é claro, é bem possível que você não goste de Roberto Carlos. Não é uma certeza, eu tô chutando aqui, pode ser que você goste também, né, vai saber? Deixa eu jogar uma moeda aqui e decidir.
*joga a moeda*1
Ok, deu aqui que você não gosta mesmo. Continuando, supondo que a moeda esteja certa, pode ser que você não considere Roberto Carlos uma opção de audição. Pelo motivo que for. Você pode ter lido sobre os acenos do Roberto para a ditadura e ter criado antipatia. Talvez até não tenha um motivo concreto, é só uma aversão à sua imensa e indissociável aura brega de “cantor de mãe”. Tudo bem compartilhar um ou outro som com o pai, um João Nogueira ou Dire Straits, mas pegar os artistas da mãe para escutar? Roberto Carlos? Fábio Jr.? José Augusto???
Relembrando, estou só supondo, seguindo a lógica da moeda. Eu mesmo tive esse sentimento muito natural de aversão ao Roberto por ser som de mãe que sumiu com a primeira música dele que eu gostei.
Mas antes, preciso definir minimamente o que seria “gostar de música” para mim, para esse texto e talvez para usos futuros nessa newsletter: Gostar de uma música específica é dar play. É um sentimento que pede ação. É ser praticante. Estar num lugar e, por acaso, tocar uma música que te agrade seria mais aceitar uma música do que gostar2. E é por isso que eu consigo apontar qual foi a primeira música que eu gostei do Roberto Carlos, mesmo tendo nascido num mundo onde essa figura já era estabelecida, poderosa e frequente na mídia. Quando jovem, revirando bagulhada dos meus pais, acabei encontrando um CD do Roberto. Tudo naquela capa gritava anos 60, a fonte, a foto desse Roberto juvenil, esticado numa típica gôndola da Itália e o próprio ano de 1968 que estava enorme no título do álbum, que não era um dos inúmeros self titled que dão ar cômico a sua discografia
Eu adorei essas contradições simples montadas nos versos da música.
Foi pensando em me guardar
E querendo não querer
Me dizendo pra esquecer
Foi pensando só em mim
Que eu pensei só em você
(É meio o “foi sem querer querendo” do Chaves, né?)
Desde então, finalmente, eu poderia falar “tá aí, essa do Roberto Carlos, eu gosto” e botar para tocar quando tivesse vontade.
🔥🔥🔥 As mais safadas do Roberto Carlos
Existem músicas do Roberto Carlos sobre sexo. No plural, mais de uma mesmo. Não é questão de uma possível interpretação do que também pode representar uma sequência de palavras lúdicas. Você bate o olho na letra e o primeiro pensamento será “ele tá falando de meter”. Também não é como se o Roberto terminasse uma música no seu show e emendasse outra avisando “essa aqui é para quem gosta de fazer amor de ladinho”. Ele não pode fazer isso; pessoas literalmente morreriam diante dos seus olhos.
Cavalgada (Roberto Carlos/Erasmo Carlos)
Talvez a canção mais famosa sobre sexo do RC seja “Cavalgada”. Não há qualquer esforço em esconder esse teor, visto que você pode apenas ler o título da música e pensar “ó lá… ‘cavalgada’… só pode ser putaria”.
NÃO. Não é putaria, é Roberto Carlos. Esse, ao menos, seria o pensamento de um fã de Roberto.
Os comentários de vídeos de música no Youtube são um túnel do tempo. Com o material do Roberto, não seria diferente. Vários relatos extensos de sexo casual de décadas atrás são descritos nesse espaço como breves casos, um affair, uma doce lembrança, por pessoas casadas ou solitárias, seguindo uma lógica que economizaria 30 versos de Rita Lee, onde sexo é amor e ponto (afinal, faz-se amor, na prática).
Veja bem, não se engane, Roberto Carlos cantando sobre transa é tão Roberto Carlos quanto em qualquer outro contexto. Deus deu a esse homem o dom de usar as palavras certas para um momento tão íntimo.
Os Seus Botões (Roberto Carlos/Erasmo Carlos)
Antes, olhe essa capa
O homem tá como? “Putífero”, um jovem com o cérebro carcomido pelas cenas de sexo desnecessário que não avançam plot diria. Não somos assim, vamos usar as palavras certas (assim como o próprio Roberto faz ao falar de sexo): ele está… pro crime.
Retomando, cantar sobre sexo de uma forma “não vulgar”, como os fãs de Roberto sempre exaltam nos comentários de suas músicas, muitas vezes parte de uma renderização de cenário, um quase worldbuilding, como acontece nessa letra
Nos lençóis macios, amantes se dão
Travesseiros soltos, roupas pelo chão
Braços que se abraçam, bocas que murmuram
Palavras de amor enquanto se procuram
Chovia lá fora e a capa pendurada
Assistia a tudo e não dizia nada
E aquela blusa que você usava
Num canto qualquer, tranquila esperava
Sexo acontece no espaço, alterando-o, deixando pistas. Sexo é a desarmonia de um território, uma história desenhada na inquietude da paisagem.
Nessa música, Roberto entrega a análise forense da transa, descrevendo com detalhes os indícios do crime mais sedutor ao ser humano: o amor carnal.
(Bandido! É, bandido. Roberto tá bandido naquela foto logo acima)
Café Da Manhã (Roberto Carlos/Erasmo Carlos)
Sexo também é tempo. Ou melhor, não é; seria, melhor dizendo, a ausência de tempo. Em “Café Da Manhã”, o ingênuo Roberto acredita que tem o tempo em suas mãos. Ele, tolo, faz planos de momentos pós-transa. E depois, faz planos de não seguir os seus planos. Ele se perde totalmente no sexo, ficando sem qualquer noção da passagem do dia, até chegar a uma das conclusões mais românticas que um homem poderia ter nos braços de alguém
E a música, de nome “Café Da Manhã”, termina com ele pedindo o jantar. Moral da história: não há como ter o tempo em suas mãos se elas estão agarrando um seio.
O Côncavo e o Convexo (Roberto Carlos/Erasmo Carlos)
Essa não tem defesa, é a safadeza desenfreada. Roberto não só diz, com todas as letras, a palavra “S E X O”, como também aborda o encaixe, o “cleck”, o TCHAN!
E, claro, a ousadia dessa canção teria consequências. A música também é digna de lembrança por ter proporcionado este momento
Tinha essa novela da Globo, “Páginas da Vida” (2006-2007), do Manoel Carlos. Quando o capítulo terminava, uma pessoa aleatória, um civil, alguém não necessariamente treinado para estar em frente às câmeras, contava uma experiência pessoal, uma página da sua vida (sacou?). A senhora do vídeo acima virou assunto por alguns dias em revistas e no TV Fama, o trending topics da Era Hiboriana, por contar como gozou pela primeira vez, sozinha, sem querer, ouvindo a música “O Côncavo e o Convexo”, de Roberto Carlos, no alto dos seus 45 anos. E, bem, é isso. Uma mulher de quase 70 anos falando sobre sexo no horário nobre da TV, de forma aberta, bem descontraída, até. Não tem como estranhar as pessoas terem achado isso engraçado na época, porque a própria senhora ri contando. Eu ri dela rindo. Tem um silêncio enorme no fim do relato que acabou comigo.
Obviamente, assistindo esse vídeo hoje, a gente pode ver questões aí, como o começo prematuro na vida sexual e a falta de noção sobre as próprias possibilidades no sexo para além da vontade do homem. Achei interessante ela terminar contando que foi perguntar para amigas o que tinha acontecido, escapando de um “quem sabe, sabe ;)” comum num mundo averso ao explícito, ao que é tido como vulgar. Talvez, quando Roberto finalmente usou a palavra “sexo” em “O Côncavo e o Convexo”, ele tenha aberto brevemente um portal entre esses dois mundos: o do sexo romântico, lúdico, dos travesseiros soltos e roupas pelo chão e o mundo da sacanagem.
🎵 Mais música
Nesse começo de 2025, fiquei catando sons para conferir do aglomerado de abas do navegador com um bocado de listas dos melhores de 2024 e bastante material não tão recente também.
Cocobat: ter Go Nagai em duas capas na discografia dessa banda me fisgou. Lembra um pouco SUPER JUNKY MONKEY, outra banda japonesa que também dá vontade de usar uma berma bege com bolsos grandes o bastante para não precisar usar uma mochila.
Cybass: Música Popular Carioca, vibe bailão que só conheci por VHS
Arthur Verocai: acho que eu nunca tinha parado para escutar um álbum inteiro de Arthur Verocai. Essa música ficou passeando pela minha mente um bom tempo
Rəhman Məmmədli: guitarradas do Azerbaijão
🔗 Outros links:
A newsletter do Ryot é legal (substack)
Um texto sobre… gostos? Não lembro, li no longínquo ano de 2024 e deixei para compartilhar depois (substack)
Sobre o Nosferatu do Eggers (substack)
Estamos em 2025 e tem vídeo recente do Kaptainkristian falando sobre comida no universo de Tolkien (Youtube/Inglês)
Um zine com fotos da Björk pelo Spike Jonze, quando eles se conheceram, nos anos 90 (tem que cadastrar e-mail)
Ficamos por aqui. Esse não é o texto que eu queria fazer ou o assunto que qualquer pessoa que acompanha essa newsletter esperaria ler. O que acontece aqui, é que há dois macacos dentro da minha cabeça gritando. Alto. E eu tenho que escrever o que eles gritam.
Não deu o resultado que eu queria… MELHOR DE TRÊS
Em contextos passados, dá para falar também de “esperar música”, de torcer para que determinada música tocasse na TV, rádio ou festas. Não é ação, mas ainda é um “gostar”.
Acho que essa é o meu texto favorito do substack, arrasou 👍🏾